Nas Fronteiras da Pandemia

O relato de uma viagem à beira da Covid-19

Apresentação

Há exatos seis meses, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que estávamos em uma Pandemia de Covid-19, provocada pelo novo coronavírus (SARS-Cov2). Naquele dia, uma quarta-feira, estávamos em um passeio turístico em Ciudad Del Este, Paraguai, e sentimos os primeiros efeitos dessa declaração, mas os receios do contágio por uma doença desconhecida começaram bem antes, se acumularam nos cinco dias anteriores e nos acompanharam até a volta para casa, no dia seguinte. Seria uma simples viagem de férias – por isso não entraria aqui no Partiu Interior – mas, pelas circunstâncias e pelo registro de um momento tão difícil para todo o mundo e que ficará na história, vale o registro: como foi viajar na beira de uma pandemia?

Este relato de viagem traz atitudes e gestos comuns, que poderiam ser de qualquer turista, em qualquer lugar do mundo, e que em outro contexto seriam absolutamente normais e até poderiam passar despercebidos. Mas estávamos no início de um problema grave que hoje, seis meses depois, já infectou mais de 27 milhões de pessoas em todo o planeta, sendo mais de 4,2 milhões de casos no Brasil, país que hoje atinge a terrível marca de 130 mil mortos por Covid-19.

Relembrar esta viagem é uma volta no tempo, é pensar em como viajávamos antes de isso tudo começar. É um relato da perda gradual da “inocência” e de como as pessoas pensavam e reagiam quando a doença parecia (ainda) tão distante quanto desconhecida. É também a descrição de pequenos sinais sobre como Brasil, Argentina e Paraguai encarariam o maior desafio sanitário e político dos últimos 102 anos, e cujas consequências serão lembradas por gerações.

Bem-vindos e bem-vindas
a essa viagem.

Parte 1 de 5

Quarta-feira, 11 de março de 2020. Fim de noite em Foz do Iguaçu-PR.

Em uma pequena pizzaria na avenida larga por trás do hotel, sentados na mesa mais longe de todas, observávamos uma dupla que conversava em inglês e um grupo, talvez de argentinos, que conversava tranquilamente e repetia clones de chopp. Havíamos pedido pizza de bacon – mesmo sabor da noite anterior, mas desta vez de tamanho pequeno – e apenas uma lata de refrigerante. Esperávamos apenas que essa soma cumprisse a função de não nos deixar sentir fome algumas horas depois, no aeroporto, pois a vontade de comer era nenhuma. O ar-condicionado, que na terça parecia insuficiente, gelava sem piedade a minha pele, que parecia quente apenas por dentro. Sensação estranha. Pagamos a conta no balcão e limpamos as mãos e o cartão com álcool, encarando os estranhamentos da senhora do caixa e do homem empolgado que gritava os pedidos. Saímos sem falar nada, evitando qualquer comentário que nos fizesse lembrar a notícia que havíamos escutado no Jornal Nacional naquela mesma noite.

Caminhamos lentamente por outra avenida larga, dobramos à direita e chegamos na Avenida Brasil. “Ou é um cravo, ou é uma rosa, ou é a flor do Bogari”, eu repeti o verso de Ascenso Ferreira quando avistei o letreiro do Hotel, assim como em todos os dias da viagem, e completei: “será que está tudo bem? E se a gente estiver infectado?” Nara repetiu que estava tudo bem, que eu não estava doente, e isso me deixou tranquilo. Já no quarto 416, revelei que não me sentia muito bem: a garganta estava seca, o corpo doía e a barriga dava voltas. Talvez fosse cansaço, o tempo seco ou a sopa paraguaia que não descera muito bem. Mas talvez fossem sintomas da Covid-19, não sabíamos. Ninguém sabia.

[Mensagem de texto – Grupo da Família]

Eu: Já no hotel!

Pai: Graças a Deus. Chegam de que horas amanhã?

Eu: Previsão é 17h30… Mas acho melhor o senhor não nos buscar no aeroporto.

Cinco dias antes. A caminho do aeroporto do Recife.

Meu pai faz questão de nos levar e buscar no aeroporto, seja qual for o horário do voo. No caminho de casa até lá, repete todos as recomendações que devo seguir na viagem: cuidado para não esquecer nada, cuidado para não dar bobeira com a mala, cuidado com o táxi ou com o Uber, cuidado com o que come, cuidado com suas aventuras e não vão se arriscar. Mas naquela madrugada vazia as recomendações dele foram concentradas na doença desconhecida que se espalhava pelo mundo: usem máscara e evitem aglomerações. Eu, mal humorado, respondia que não usaria, porque a recomendação era utilizar apenas se tivesse doente, para não faltar para os profissionais de saúde; e ele repetia que havia comprado aquelas máscaras há meses para evitar a poeira da lixa e o cheiro da tinta na reforma da casa. “Não vou usar, está decidido”.

Minha desobediência quase adolescente se baseava não só na OMS, mas na imagem de pais super protetores que às vezes volta nos momentos de estresse e me impede de ouvi-los como deveria. Para nós, lavar as mãos, usar o álcool em gel a todo instante e manter distância das pessoas eram o bastante para reduzir os riscos de contaminação pelo novo coronavírus, além do mais, naquele dia 5 de março, apenas dez casos haviam sido confirmados no Brasil (8 em SP, 1 no RJ e 1 no ES).

Assim que entramos no aeroporto dos Guararapes, avistamos um homem de máscara e logo julguei que deveria estar doente, portanto, deveríamos ficar distantes – o que fizemos. Depois pegamos a fila, embarcamos. Nos rostos dos passageiros, apenas expressões de sono e sorrisos nem sempre amigáveis, nada de máscaras. Usamos álcool e guardanapo para limpar os apoios dos braços, as bandejas dos nossos assentos e nossas mãos durante vários momentos nas três horas até Guarulhos-SP, em um voo tranquilo pelo céu limpo.

Sexta-feira, 6 de março. O dia inteiro em Guarulhos-SP.

Sempre. Meus ouvidos sempre doem. Mesmo sob efeito de analgésico, naquela manhã desembarquei em Guarulhos-SP com a sensação de terem enfiado um prego imenso que percorreu todo meu canal auditivo, atravessou o tímpano e desceu pela Trompa de Eustáquio. Fomos praticamente os últimos passageiros a deixar o avião pelo túnel de metal e vidro em direção ao portão 11 do terminal 1, e eu só ouvia meus passos e minha respiração abafada. Vi quando Nara, ciente da minha quase surdez momentânea, virou-se e articulou lentamente cada palavra que não entendi, então ela gesticulou rapidamente. Atrás dela havia uma multidão, o aeroporto mais lotado que eu já vi.

Eram pouco mais de 9h. O sol que entrava pelas paredes de vidro revelava uma névoa de poeira que envolvia inúmeras cabeças de todas as cores, espalhadas, em grupos ou filas em vários sentidos. Os homens de azul, ainda mais altos que meus 1,93 m, eram de algum time de vôlei – reconheci um da Seleção Brasileira – e imaginei que alguns centímetros a mais deveria facilitar a missão de procurar algum lugar mais vazio. Cadeiras lotadas, filas nos cafés, filas nos banheiros femininos. Nara foi lá, enquanto eu mandei mensagens pelo celular.

[Mensagem de texto – Grupo da Família]

Eu: Chegamos

Pai: Graças a Deus. Como foi o voo?

Mãe: E o ouvido?

Irmão: Graças a deuxxxxxx

Irmão: Aproveitem!

Eu: Tranquilo. Muita gente de máscara aqui.

Pai: Usem máscara.

Eu: Não, está tranquilo. Usando álcool. Agora procurar um lugar para comer.

Pai: Cuidado.

Irmão: Evitem aglomerações.

[Mensagem de texto – Grupo de Amigos]

Eu: Minha gente, aeroporto lotado.

Amigo: Eita.

Eu: Muita gente de máscara. Muita mesmo.

Amigo: Foto foto foto foto foto!

Eu: Tenso

Amiga: Amigo, você é muito assustado. Já percebeu? Vai ficar tudo bem, vocês não vão ficar doentes. Aproveitem a viagem.

Eu: Tem uma galera com máscara que usam em construção civil.

Amigo: Foto foto foto foto foto!

Andamos por todo terminal até encontrarmos um lugar para comer pão de queijo e chá-mate. Fila para fazer pedido, fila para receber a comida e pessoas em volta das mesas esperando que alguma delas desocupar. Conseguimos uma perto do balcão de atendimento, de onde ouvíamos todos outros pedidos, limpamos as mãos com álcool e, apesar das cinco horas de espera até o voo para Foz do Iguaçu, comemos sem demora e levantamos para desocupar a mesa e sair do tumulto. Mas para onde iríamos?

Teríamos até as 14h para vagar pelo aeroporto livrando-se de aglomerações. Encontramos duas cadeiras vagas no lounge do corredor que dá no Terminal 2 e ficamos algumas horas por lá lendo revistas, livros e trocando mensagens com outras pessoas por aplicativo. Na hora do almoço, limpamos a bancada de madeira, as latas de refrigerante, e as mãos e finalmente comemos dois “hot dogs gourmet” com gosto de papelão e que custaram uma nota. Conversamos sobre os aviões que víamos chegar e sair e eu mostrei os detalhes das aeronaves que havia aprendido nos canais do Lito e do Fernando no Youtube, em vídeos que haviam me ajudado a superar o antigo medo de voar. De repente nos demos conta de que o corredor estava vazio porque do Terminal 2 vinham as pessoas chegavam de voos internacionais. O coronavírus já se espalhara por mais de cem países, mas o Brasil sequer cogitava impedir a entrada de estrangeiros. “Melhor sair daqui”. Então andamos pelo Terminal 1 mais uma vez à procura de um lugar para sentar, longe dos passageiros que se multiplicavam a cada hora daquela sexta-feira.

Percebi que por uma das escadas entre o corredor e uma loja não havia movimento algum, e também não havia placa proibindo o trânsito por ali. Decidimos descer os degraus para averiguar o que havia no piso inferior e achamos um pequeno paraíso: um portão de embarque talvez em reforma, com cadeiras vazias e ninguém por perto. Esticamos as costas nas pequenas cadeiras azuladas (se é que é possível esticar-se ali), deitamos as pernas sobre as malas e cheguei a cochilar por quase meia hora. Acordei preocupado com a hora do embarque e abri o aplicativo Flightradar24 para acompanhar as informações do nosso voo.

— Previsão de atraso. Remarcado para as 15h. Vamos verificar no mural.

— Vamos.

Em um dos murais do tumultuado andar de cima o voo estava confirmado, e as pessoas já iniciavam uma fila perto do portão de embarque. Porém, a cada atualização, a hora de embarque tornava-se mais distante. Depois, recebemos um voucher para refeições do outro lado do aeroporto. Tivemos a sorte de sentar em uma mesa que uma funcionara acabara de limpar com álcool e, mesmo assim, tínhamos o cuidado de tocar apenas nos talheres e no copo plástico. Atravessamos todo o aeroporto de volta, tivemos que passar por filas, portões, revistas, detectores e, finalmente, Terminal 1. Somente às 18h30 chegamos à última fila, na porta do avião, diante de um funcionário mal humorado que insistia para despachar a bagagem sem custo. “Não, obrigado”.

Mesma noite. Voo de Guarulhos a Foz do Iguaçu.

Os assentos verdes meio desbotados chamaram minha atenção e me fizeram pensar que a pintura branca e laranja da parte exterior era a parte mais nova da aeronave. Seria uma preocupação se eu ainda tivesse medo de voar. Só queremos chegar. Nossas poltronas entre a asa direita e a cauda, e cercadas por uma família que inicialmente pensei ser de italianos. As brincadeiras entre o pai e a filha na fila de trás revelam um espanhol de pronúncia muito rápida. A mãe sentou-se ao meu lado com uma bebê, mas depois trocou como filho de dez ou onze anos que estava na fila da frente. Avulso ao meu lado, levantou, brincou no corredor, falou e irritou com joguinhos de celular por quase todo percurso.

Nas curvas, antes de iniciar a descida, o garoto espirrou bem no meu braço.

Nas Fronteiras da Pandemia

Texto: Hugo Peixoto
Fotos: Nara Viana e Hugo Peixoto

Confira a série completa:

Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 1
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 2
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 3
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 4
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 5

3 comentários sobre “Nas Fronteiras da Pandemia

  1. Pingback: Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 5 (Final) | #PartiuInterior

  2. Pingback: Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 2 de 5 | #PartiuInterior

  3. Pingback: Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 4 de 5 | #PartiuInterior

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