Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 3 de 5

Segunda, 9 de março. A Garganta do Diabo e as primeiras consequências da Covid-19

Descemos bem cedo para tomar café. Foi a forma que encontramos de evitar consumir alimentos expostos a muitos hóspedes. Dei preferência a comidas quentes e que estavam em recipientes de alumínios tampados, mas não resisti a uma torta salgada de milho, de cujo sabor lembro-me até hoje. Poucos minutos depois, no saguão do hotel, o guia argentino leu nossos nomes na lista sem o sorriso habitual que acompanha boa parte desses profissionais e nos conduziu a um ônibus que passaria em outros hotéis buscando outros turistas até a sede da agência, onde finalmente pegaríamos outro transporte até o Parque Nacional Iguazú, o lado argentino das cataratas.

A viagem demorou mais do que o previsto, e já no ônibus o guia dividiu os turistas em três grupos, com base na velocidade para caminhar e no condicionamento físico, recomendou cuidados com as armadilhas para que você consuma mais no parque e, principalmente, que não interagíssemos com os quatis. Na chamada em que perguntou sobre a cidade de cada passageiro, percebemos que todas as regiões do Brasil estavam representadas naquele ônibus, mas nem pensamos sobre o que aconteceria se pelo menos um passageiro ali estivesse infectado pelo coronavírus, pois naquele período ainda não se cogitava que pessoas sem sintomas poderiam transmitir a doença.

Cataratas Argentinas

No Parque Nacional do Iguazú começamos o passeio com a caminhada até o trenzinho que nos levaria à impressionante Garganta do Diabo. Os pequenos vagões saíam lotados e nós curtíamos o barulhinho do trilho olhando para a mata, pois estávamos cara a cara com uma família desconhecida e que também não queria conversa. Na estação, mais uma parada para orientações e, finalmente começamos a caminhada até a principal queda d’água. Por mais ágil que fossem nossos passos, o ritmo era quebrado constantemente por outros grupos mais lentos que seguiam enfileirados nas estreitas passarelas de metal. Tivemos o azar de encontrar um grupo com dezenas de idosos coreanos – com máquinas Nikon no pescoço, bengalas e até guarda-chuvas – e o processo de “ultrapassagem” foi complicado.

Umas curvas a frente e lá estava ela: a Garganta do Diabo. Uma nuvem refrescante nos envolve e acaba o calor que queimava nossos pescoços e braços, e nosso medo é molhar ou derrubar o celular no meio da pequena multidão que sorri impressionada com a quantidade de água que o Diabo bebe por segundo.

É difícil achar um local para fotografar sem que outro turista apareça posando, e quando finalmente conseguimos, um casal, acho que de mexicanos, se ofereceu para tirar nossa foto. Feito. Depois tiramos fotos deles no mesmo lugar, destrocamos os celulares e trocamos agradecimentos e sorrisos. Na volta, mais coreanos para ultrapassar nas passarelas e mais espera, agora sob o teto baixo e verde da pequena estação de trem, lotada e quente como terminais de passageiros no Recife.

O calor nos acompanhou por todas as trilhas pelo Parque. No mapa entregue pela agência e, de acordo com vídeos a que assistimos pelo Youtube antes de viajar, havia bebedouros com água para encher as garrafas plásticas que carregávamos na mochila, no entanto, nós não os encontramos. Não lembro se chegamos a questionar se usaríamos os bebedouros, devido ao risco de sermos contaminados pelo novo coronavírus. Só encontramos água para comprar na lanchonete do parque, junto com refrigerantes e as famosas empanadas argentinas. Com um pegador de madeira que passava de mão em mão, escolhemos de carne, de frango e de queijo. Depois sentamos na única mesa vaga – ainda com pratos, talheres e guardanapos de outros clientes – e saboreamos aquela maravilha de lanche que os hermanos fazem tão bem.

Durante o passeio, algumas coisas chamaram atenção. A primeira foi que apesar da circulação intensa em ambos os sentidos, era um dia de pouco movimento no parque. De acordo com nosso guia, em tempo de férias escolares e alta vazão das cataratas, aí sim, o lugar fica lotado. Depois, a teimosia das pessoas em contrariar todas as recomendações de segurança e interagir com os quatis – alimentando-os, tentando tocá-los ou arriscando uma selfie.

A lanchonete era toda gradeada, uma forma de evitar a presença dos animais silvestres. Na extensa área de grama em volta dela, grupos de estrangeiros confraternizavam em piqueniques – o que já começava a parecer estranho para nós. Em um desses grupos uma pessoa tossiu e, como de costume, imitamos (entre a gente) o “xiiiiiiii” do Raul Gil.

As empanadas garantiram um conforto no estômago até o final do passeio, mas não por toda a viagem de volta a Foz do Iguaçu, porque uma confusão desnecessária nos fez ficar na alfândega bem mais que o previsto. Os fiscais argentinos perceberam a falta de documento de um dos turistas do nosso ônibus. O guia, desesperado, procurou diversas vezes e, depois de quase 30 minutos, entrou no transporte para informar ao rapaz, que respondeu categoricamente: “você perdeu, porque eu lhe entreguei”. Ambos decidiram descer para resolver a situação na fronteira, e vários outros passageiros decidiram sair do ônibus pois, com a porta aberta, o ar-condicionado já não dava conta do calor. O impasse durou ainda cerca de uma hora, até que o guia e o rapaz descobriram que o documento que faltava era de outro passageiro, com mesmo nome, e que dormia desde a hora em que o guia passou para recolher os documentos. Situação resolvida, todos de volta, e um senhor com a camisa de futebol do Tombense (MG) comenta em voz alta para todos ouvirem:

— A Argentina quer deixar um ônibus em quarentena por causa do coronavírus. Está lá a confusão formada.

— É? Tem alguém doente?

— Lembra daqueles coreanos com quem cruzamos várias vezes por lá? Então, é o ônibus deles. Tem muito caso lá, né? Agora se deixou entrar no país, não tem o que fazer… Melhor deixar cruzar a fronteira de volta e o Brasil que resolva.

Saímos de lá sem saber o desfecho do primeiro impasse “diplomático” em decorrência do novo coronavírus.

Dois hambúrgueres, uma torre de chopp e uma cena preocupante

De volta ao hotel na avenida Brasil, decidimos jantar em uma hamburgueria ali perto e que estava sempre cheia – para nós isso é um bom sinal. Para evitar aglomeração e ambiente fechado, sentamos em uma das mesas da calçada e pedimos dois sanduíches artesanais e uma torre de chopp. Quando a torre chegou, limpamos com álcool a torneira que a pessoa pressiona com o copo para a cerveja escorrer. Antes de nossos sanduíches chegarem notamos uma mesa com pelo menos seis pessoas, entre homens e mulheres, todos aparentemente com mais de 50 anos. Um dos homens era gordo, estava muito bêbado e segurava o garçom pelo braço ou o abraçava pelo pescoço para falar. Eram italianos, notamos pelo idioma. O homem parecia se exaltar em alguns momentos, mas depois gargalhava. Percebi que ele tossia.

Nas Fronteiras da Pandemia

Texto: Hugo Peixoto
Fotos: Nara Viana e Hugo Peixoto

Confira a série completa:

Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 1
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 2
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 3
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 4
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 5

3 comentários sobre “Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 3 de 5

  1. Pingback: Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 5 (Final) | #PartiuInterior

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  3. Pingback: Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 4 de 5 | #PartiuInterior

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