Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 2 de 5

Sábado, 7 de março. Hotel, passeios e jantar.

Foi difícil acordar na manhã seguinte. Ainda cansados do dia no aeroporto e sem esquecer o petisco gorduroso e a cerveja da noite anterior que cumpriram a função de jantar-fora-de-hora, descemos para o café da manhã no piso do hotel. Na porta, um recipiente de álcool em gel para quem quisesse higienizar as mãos e uma senhora simpática recebia os hóspedes com um sorriso bonito. Observei que quando as pessoas vão pegar os talheres e os pratos, nunca pegam somente no que vão usar, e decidimos que era melhor também limpar os cabos dos garfos e facas quando chegássemos na mesa. Havia poucas pessoas no salão, mas nas idas e vindas ao bufê tão variado, notei pelo menos quatro idiomas: espanhol, italiano, inglês e português. Quantas pessoas já passaram por ali das 6h às 8h e tocariam nos talheres, nas conchas, nas panelas, nas sanduicheiras… Então decidimos limpar as mãos com álcool em gel sempre que retornássemos à nossa mesa.

Foz do Iguaçu é um destino bem conhecido e repleto de atrativos, então não faltariam atividades para o primeiro dos cinco dias de viagem. Começamos com sorte: o motorista do Uber que pedimos para o Parque das Aves deu várias dicas e parou em um quiosque para que comprássemos os ingressos – depois ele explicou que não era somente simpatia, receberia um percentual dos valores através de um código. Sem problemas. Começamos pelo Parque para, de lá, conhecermos o Parque Nacional do Iguaçu, onde ficam as famosas cataratas.

Parque das Aves

Talvez tenha surgido uma nova paixão aqui: fotografar pássaros. Por outro lado, saber que boa parte daquelas aves precisarão permanecer confinadas para sobreviver é angustiante.

Parque Nacional do Iguaçu:

Não sei se pelo horário ou pela baixa vazão, havia poucas filas. No andar de cima de um ônibus colorido e quase vazio, sentimos o vento com cheiro de mata deslizar pelo rosto, e estranhamos o excesso de repelente e protetor solar que três estrangeiros borrifavam nos braços e rostos avermelhados. Decidimos iniciar com a trilha a pé pela mata e o passeio de jardineira pelas correntezas e pedimos parada.

A primeira parte da trilha, em um trenzinho de metal puxado por um trator elétrico, um guia com voz de preguiça lamentou ter que explicar todo roteiro, a fauna e a flora em português, inglês e espanhol (que ele informou não ter tanta habilidade e de vez em quando engolia uma informação ou outra). Um grupo de ingleses – notei pelo sotaque – não prestava atenção alguma, e, sentada à nossa frente, uma guia e intérprete bem babushka, com quem eu havia trocado algumas palavras na bilheteria, traduzia tudo para uma russa e dois russos com pelo menos 25 anos de idade.

— Poka!— a babushka acenou, pois eles continuariam no trenzinho, enquanto nós seguiríamos a pé.

— É… — minha expressão de esquecimento falava por mim.

— Poka! Tchau. Não lembra?

— Ah, sim! Poka-poka! — Acenei e sorri porque lembrava apenas da despedida formal em russo que vira no aplicativo de idiomas, mas ainda não sabia pronunciar “до свидания”.

Depois de uma trilha inteira sem tocar no corrimão – não por medo do vírus, mas sim orientação do guia para evitar tocar acidentalmente em aranhas – chegamos ao local de onde saem as jardineiras. O vestiário fica em um local pequeno e abafado, logo depois de uma escada estreita em que todo mundo sobe e desce sem muita organização. No hall entre os vestiários masculinos e femininos, muitos armários, muitas pessoas, muito barulho e pouco espaço e pouco ar. Troquei minha camisa ali mesmo. Guardamos as coisas e fomos para a fila para o trenzinho, do trenzinho para mais uma fila, e da fila para o barco.

Sentamos na parte do meio do barco: Nara na ponta, eu no meio – ao lado de uma jovem e de seu namorado que riam e xingavam de brincadeira o condutor do barco em espanhol. Todos tremiam de frio e, enquanto tentávamos esconder o rosto dos pingos afiados da queda d’água, por vezes vi meu rosto a cerca de 30 centímetros do rosto da estrangeira, e senti chover no pescoço os gritos da senhora que estava atrás de mim. Coisas impensáveis hoje. Saímos de lá encharcados, espremendo as roupas e sequer lembrávamos da existência do coronavírus.

Perto das 16 horas, chegamos ao lado brasileiro das Cataratas do Iguaçu. Fizemos a trilha maior e, de um dos mirantes vimos diversos urubus sobre a queda d’água em que o barco nos levou para um banho de água gelada. Melhor não pensar muito nisso. Seguimos pelas passarelas metálicas para as impressionantes quedas d’água, refiz (com a mesma pose e uma câmera no pescoço) uma foto que um tio fez em 1995, e que está na parede da casa de minha avó desde então. Em seguida, pacientemente, disputamos espaço no aglomerado de turistas que querem a foto sem ninguém por perto.

À noite, em um restaurante de comida italiana, Nara queixava-se de dor de cabeça e calafrios. Não sabíamos se era o cansaço de um dia intenso ou se resquícios de uma virose que viera na semana anterior, logo depois do carnaval.

Domingo, 8 de março. Paciência, energia e programa de turistão

Descemos para o café da manhã bem cedo e por pouco não fomos os primeiros. Tive o cuidado de escolher as fatias de melancia que estavam por trás da bandeja, não tão expostas. Se alguém tossisse ali, as chances de contaminação seriam menores. Sentei-me virado para a porta, com os ouvidos atentos aos idiomas e os olhos curiosos por sinais de qualquer pessoa que parecesse doente. De cara, todos saudáveis.

Depois do café, tentamos carros da Uber para o Templo Budista, mas dois motoristas cancelaram a viagem e um aceitou, mas ficou rodando pelo bairro para tentar a grana do cancelamento. Tivemos que ir de ônibus. Boa parte do percurso eu dediquei a dispersar toda minha raiva em denúncias e reclamações no aplicativo. A outra parte do caminho foi de medo de descer no local errado e ter que andar muito naquele sol forte e tempo seco.

Templo Budista

Chegamos bem. O templo seria um local de paz e meditação não fossem os pedidos de licença para fotografar e os monomotores que rasgam o céu como mosquitos sobre as cabeças dos budas e vomitam paraquedistas e turistas em voo duplo. Mas descansamos, fizemos pedidos, acendemos incensos e repetimos os mantras que nos fizeram esquecer de tudo que estava além daquele lugar.

Itaipu Binacional

Escolhemos o passeio completo, com tour pela área externa e pelas instalações da usina hidrelétrica de Itaipu, uma das maiores do mundo. A cada etapa do roteiro, eu imaginava as pessoas do meu círculo que não se sentiriam muito bem. Primeiro, as que têm medo de altura, pois em vários momentos andamos por passarelas a dezenas de metros chão. Depois, os claustrofóbicos e os hipocondríacos, pois descemos 14 pessoas no mesmo elevador, respirando o mesmo ar e praticamente sem se mover, por uma altura equivalente a nove andares, para vermos umas das turbinas girar a toda velocidade. Acima de nós, um mundo de água e é quase impossível não imaginar o que aconteceria de aquela obra-prima da engenharia e das relações internacionais se rompesse. Usamos capacetes e enchemos as garrafinhas plásticas em vários bebedouros. Não lembro de ter usado álcool em gel por lá. A sinalização de segurança indica a proibição de tocar em qualquer coisa.

Marco das Três Fronteiras

O percurso entre a hidrelétrica de Itaipu e o hotel foi uma conversa sobre carros roubados na região. O motorista do Uber explicou que os roubos aconteciam em estacionamentos de hospitais e supermercados e os carros eram levados para o Paraguai. Passamos pouco mais de uma hora para tomar banho, trocar de roupa e embarcar em mais um carro, desta vez para o Marco das Três Fronteiras, por favor. “Eu conheço este sotaque”, disse o motorista recifense ainda antes de sairmos da Avenida Brasil. O senhorzinho contou que nasceu e viveu no Recife por anos, mas foi morar no Rio de Janeiro para acompanhar a filha, que havia conseguido um bom emprego por lá. Depois ela foi transferida para Foz do Iguaçu e o convenceu a ir morar lá também, em troca de mais qualidade de vida e livre da saudade. Estava feliz, podíamos perceber pelos sorrisos a cada esquina, e nos deu algumas dicas de como voltar do Marco, pois lá não tem sinal de celular.

A quantidade de veículos tentando estacionar, os guardadores de carros e o fluxo de turistas barulhentos em direção ao prédio de tijolos aparentes dão sinais de que o Marco das Três Fronteiras é um produto bastante lucrativo para as agências e, ao entrar, percebemos que o negócio é organizado, bem ao estilo “turistão”: bilheterias lotadas, catracas rodando a todo vapor e foto do casal aqui, para pagar na saída, se quiser. Foto apontando para a placa, foto sorrindo e foto de um beijinho. A etapa seguinte era a loja de souvenirs, lotada e com todo tipo de lembrancinhas que você já viu ou verá nos demais atrativos, mas por um preço mais caro.

Lá dentro, uma pracinha agradável para ouvir o barulho das águas do chafariz e observar o pôr do sol enquanto espera a apresentação de dança. Uma fila imensa se formou para tirar foto ao lado da placa com o nome dos três países, também havia fila para comprar as fichas, e filas para trocar as filas pelas comidas e bebidas. Com o alimento garantido, o trabalho era encontrar um local para sentar-se, pois mesas e cadeiras eram insuficientes. As pessoas mais sociáveis perguntavam se poderiam sentar e compartilhavam as mesas com desconhecidos, porém minha timidez só permitiu ficar por perto, esperar alguém levantar e sentar no local recém-desocupado.

Os quiosques de comida e as mesas ficaram praticamente vazias quando as apresentações de dança começaram. Fiquei um pouco incomodado com a brancura da bailarina que representava a índia Naipi na primeira apresentação, sobre a Lenda das Cataratas. Depois, durante as danças que representaram os três países, cercados por turistas de todas as idades e sotaques, me dei conta de que uma doença já se espalhara por todo mundo e não tinha mais volta: a doença de filmar espetáculos inteiros com o celular na ponta do braço esticado.

Após a longa apresentação e sem sinal de telefone ou internet, tivemos dificuldade para chamar o transporte pelo aplicativo, conforme previsão do senhorzinho do Recife. Conseguimos um táxi e voltamos sem conversar muito.

Já no hotel, no telejornal da madrugada, vimos que o surto da Covid-19 na Itália havia se agravado, com um aumento expressivo nos números de contaminados e de mortos. O governo italiano estava prestes a anunciar medidas drásticas, que incluíam restrições de viagem, proibição de eventos públicos, fechamento de escolas e espaços públicos, como cinemas, e suspensão de serviços religiosos, inclusive de funerais.

Nas Fronteiras da Pandemia

Texto: Hugo Peixoto
Fotos: Nara Viana e Hugo Peixoto

Confira a série completa:

Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 1
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 2
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 3
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 4
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 5

4 comentários sobre “Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 2 de 5

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