Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 4 de 5

Terça, 10 de março. Antipatia, dólar alto e um narrador no cassino

A manhã da terça seguiu a mesma rotina: café com cautela, álcool em gel e ônibus de hotel em hotel até a agência. As diferenças foram o guia turístico e o destino: fomos para o Paraguai. Rejeitar, saber dizer não, ter uma postura firme e, principalmente, ignorar as pessoas. Essas foram as principais dicas do guia para sobreviver aos insistentes paraguaios que querem influenciar suas compras em Ciudad Del Este, e que me fizeram lembrar que às vezes eu acho que tenho a cara de quem é facilmente ludibriado. Ficamos tensos, mas assim que saímos do ônibus e demos os primeiros passos nas ruas lotadas o “no, no y no” foi libertador.

— Buenos días…

— No.

Fomos ganhando confiança e perdendo a simpatia brasileira entre as inúmeras ofertas de viagra, brinquedos e meias a um palmo de nossas faces. Placas, placas, placas, gritos e palmas, mais placas, outras placas, pessoas carregando mercadorias, carros velhos, motos, turistas, mais meias, tudo isso desvia a atenção, mas é preciso seguir o mapinha da revista e continuar a procura por lojas confiáveis. Até que você vira na esquina e tudo começa novamente: placas, placas, placas, gritos e palmas, mais placas, outras placas, pessoas carregando mercadorias, carros velhos, motos, turistas e mais meias. Encontramos as lojas que procurávamos olhando para o alto (como o pessoal da agência recomendou), livrando os olhos e a mente de uma desorientação espacial repentina causada pela poluição visual.

É interessante como o comércio pulsa em Ciudad Del Este. Para nós, observar essa dinâmica é até mais interessante do que fazer compras, primeiro porque a ideia de viajar para comprar não nos agrada muito e às vezes soa como puro consumismo, segundo porque com o dólar a R$ 4,80 muitas compras deixavam de valer a pena (e ainda dariam trabalho para acomodá-las nas malas para a volta). Tudo está ali à mostra, pronto para ter o valor convertido e ser comprado junto com a sensação de que está fazendo um bom negócio. E tudo cabe nas imensas sacolas que depois caberão nos ônibus, nas vans, nas motos ou nas procissões de compradores que voltam a pé pela Ponte da Amizade. Porém, a jovem vendedora paraguaia explicou que “está pouco movimentado nos últimos meses, porque o dólar está alto”, em Português quase perfeito e pronunciando com precisão todos os /l/.

Em meio a carros velhos, carregadores com imensos pacotes, vendedores de meias e homens que apenas nos observam, uma imensa fachada de vidro dourado e espelhado reflete o sol das 11 horas e encobre a vista do rio Paraná. É o shopping Paris, cujo letreiro substitui a vogal A por uma réplica da Torre Eiffel em três dimensões. Por dentro, o excesso de luzes e o chão bem encerado confirma que shopping é tudo igual. Chama atenção a loja que lota praticamente um andar inteiro com produtos da China. Nem tão lotado quanto ela, no piso superior, encontramos o restaurante recomendado pela agência, um self-service bem brasileiro, inclusive com carnes variadas churrasqueadas na hora e servidas direto no prato por um generoso atendente de espeto e faca na mãos. Fizemos os pratos, escolhemos as carnes, pagamos e limpamos as mãos com álcool em gel – e isso na época parecia o suficiente. Nossa preocupação maior durante o almoço era não esquecer os pacotes e as bolsas que apoiei na perna, sob a mesa.

No último shopping do dia, ponto de encontro para pegar o ônibus de volta ao Brasil, subimos de escadas até o último andar em busca da praça de alimentação indicada na sinalização interna já desgastada, pois já evitávamos pegar elevadores para não ter que tocar nos botões ou compartilhá-lo com alguém “gripado”. Lá em cima, quase todas as lanchonetes fechadas (talvez consequência da localização ou do dólar) e apenas dois estabelecimentos em funcionamento: um restaurante – onde compramos água mineral a R$ 2,50 (um achado) e um cassino. Sim, um cassino! Minha chance de conhecer um cassino de verdade, real, em funcionamento.

O cassino

Entramos. O piso era aveludado, vermelho, e senti como se flutuasse. As paredes eram cobertas por lindas máquinas brilhantes, mostrando morangos, limões, peras, tangerinas e outras frutas multicoloridas que convidam à surpresa de vê-las virar barras de ouro ao som de uma musiquinha eletrônica que lhe transporta aos anos 80. “Moço, moço, moço!”, disse a funcionária do Cassino com luvas de borracha, um borrifador branco com álcool e a simpatia que eu, distraído com tanta luz, sequer esperava. Limpamos as mãos e de repente chegamos às máquinas de bingo. Uma senhora, com cigarro na mão e um copo na outra, não move sequer os olhos. De costas para ela, uma jovem de cabelo acaju faz espera a tela parar de girar enquanto uma voz eletrônica de mulher fala algo em algum idioma não identificado. Não ganhou nada. Lá nos fundos do estabelecimento, vi quatro guias turísticos de uma agência de turismo brasileira nacionalmente conhecida, esparramados nas cadeiras aveludadas e, com os olhos praticamente fechados, inseriam moedas nas máquinas como se por obrigação. Senti-me um narrador construindo a cena de um livro triste.

Sem falar nada, voltamos pelo labirinto de brilhos e sons frenéticos. O cheiro de cigarro misturado com um perfume de morango me dispersou mais uma vez e eu acenei com a cabeça, agradecendo à funcionária do cassino. Talvez ela não tenha entendido. Saímos. Mas continuamos envolvidos naquela cena quase até as escadas para o piso inferior.

— Triste, né? — Nara quebrou o silêncio.

—Muito…

Mais tarde, no ônibus, observamos trabalhadores e turistas cruzarem a ponte de volta para casa e usamos o wi-fi para comparar o preço de nossas poucas compras com o que elas custariam se fossem compradas no Brasil. No hotel, testamos as pulseiras com recursos que ajudariam a contabilizar as atividades físicas na semana seguinte, quando voltássemos à musculação e ao trabalho. Ouvimos música no aparelho de som cheio de luzes e quando percebemos já era hora de jantar. Uma pizza cairia bem!

A pizzaria da avenida de trás

Pizza une as nações. Itália, Brasil, China, Estados Unidos, tudo o que a criatividade e as referências do pizzaiolo permitirem se apresentar naquele palco de massa, queijo e molho. O Google Maps sugeriu uma pizzaria na avenida larga, por trás do hotel, e lá fomos nós com álcool em gel para limpar as mãos e pulseiras chinesas para contar os passos. A Pizzaria Peroni era pequena, mas superprática: bastava pedir, levar um comunicador para a mesa e esperar ele piscar para ir buscar a pizza e a bebida. Limpamos as mãos assim que sentamos nos nossos lugares e comentamos que aquele aparelho era meio anti-higiênico, porque talvez uma pessoa pudesse transmitir o vírus para outra, que não atentasse para usar o álcool depois de pegar o pedido e antes de comer. “Pi-pi-pi. Pi-pi-pi”. Fui buscar a pizza grande de queijo e bacon e descobri que estávamos dentro do horário do clone de chopp. “Então já já eu venho buscar o outro”, respondi.

A pizza era realmente grande, e deliciosa, assim como o chopp que o senhor por trás do balcão extraía orgulhoso da máquina, com os olhos brilhando e quase lambendo os próprios beiços. Comemos e bebemos sem pressa, com suspiros de satisfação. Entre uma fatia e outra, comentávamos sobre as compras do dia, fazíamos planos para a manhã seguinte – quando voltaríamos ao Paraguai – e eu escutava um pouco das conversas das outras mesas – um hábito antigo meu para depois transformar essas falas em algum conto. São vários idiomas, várias idades, vários sorrisos. A TV em uma das paredes mostrava os apresentadores do telejornal da noite bastante sérios e imagens de pessoas completamente cobertas por macacões e máscaras plásticas, mas todos na pizzaria só estavam ali para comer, beber e conversar.

Voltamos pela avenida Brasil lentamente. Cantarolamos, eu imitei vozes de conhecidos nossos e disse que se aquele caminhão antigo estivesse no mesmo lugar na manhã seguinte, eu fotografaria e mandaria a imagem para meu irmão mais velho, que é louco por carros. Os ambulantes na frente do hotel vendem chaveirinhos bem mais baratos que as lojas do Parque das Aves, do Marco das Três Fronteiras e da Itaipu, mas claro que, às vezes, com uma qualidade inferior.

“Ou é um cravo, ou é uma rosa, ou é a flor do Bogari”. Chegamos ao hotel.

Nas Fronteiras da Pandemia

Texto: Hugo Peixoto
Fotos: Nara Viana e Hugo Peixoto

Confira a série completa:

Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 1
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 2
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 3
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 4
Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 5

4 comentários sobre “Nas Fronteiras da Pandemia – Parte 4 de 5

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